- Peri Dias
Casos de assédio: três histórias que trouxeram comoção e mudanças

Desde que os movimentos Me Too e Time’s Up surgiram, nos últimos meses de 2017, vieram à tona tantos casos de assédio sexual relacionados a celebridades, no mundo todo, que tem sido difícil acompanhar as novidades sobre esse tema.
No Brasil, o caso mais atual envolve o líder espiritual João de Deus, acusado de assédio por dezenas de mulheres que buscaram atendimento no local onde o médium promovia sessões de cura e aconselhamento, uma casa de rezas em Abadiânia (GO). João de Deus foi preso em 16 de dezembro de 2018, a pedido do Ministério Público de Goiás. Ele nega as acusações e diz que sua liberdade de defesa está sendo cerceada. Pelo número de pessoas que o médium mobiliza e pelo volume de denúncias, o caso deve gerar repercussão por muito mais tempo.
Globalmente, o próprio Me Too, campanha promovida por estrelas de Hollywood para estimular que vítimas de assédio denunciem seus agressores e se apoiem mutuamente, gerou dezenas de acusações contra atores, diretores e líderes da indústria cinematográfica, a começar pelo produtor todo-poderoso Harvey Weinstein. Preso em maio de 2018, depois que 87 (repetindo: 87) mulheres afirmaram que ele assediava atrizes em troca de não impedir o progresso delas na carreira, o executivo aguarda julgamento. Ele nega as denúncias e diz estar passando “por um inferno”.
Independentemente do resultado que venha da Justiça americana, as acusações envolvendo Weinstein destacaram-se da massa de casos atuais relacionados a nomes conhecidos do grande público e transformaram-se em símbolos da extensão e da gravidade do assédio sexual nos Estados Unidos – e em muitos outros países, já que as campanhas Me Too e Time’s Up tornaram-se globais. Também ajudaram a tornar o debate público sobre assédio mais vigoroso do que nunca e provocaram promessas de maior representatividade feminina nos festivais e de políticas mais rígidas contra os abusos de poder em estúdios de cinema.
Porém, nem todo caso de assédio sexual que provoca comoção e mudanças sociais envolve famosos. Um dos fatores que levaram o Congresso brasileiro a aprovar a nova Lei de Importunação Sexual, em setembro de 2018, foi o fortalecimento da discussão sobre os abusos que passageiras de trens, ônibus e metrôs enfrentam. Um caso em particular provocou revolta, o do ajudante de serviços gerais Diego Ferreira de Novais, preso em setembro de 2017, depois de ser pego, pela segunda vez em menos de uma semana, assediando mulheres no transporte coletivo. Antes da lei mais recente, o Código Penal previa punição para assédio sexual em casos que envolvessem diferença hierárquica entre assediador e assediada, mas não havia um artigo para tipificar o assédio entre pessoas que não se conheciam e que ocorresse, por exemplo, na rua ou em um ônibus. Por isso, Novais acabava solto e praticava novamente as agressões. A situação, para muitos absurda, deu impulso à antiga demanda de grupos de mulheres por alterações na legislação, o que acabou se concretizando, um ano depois.
Com o objetivo de ampliar a conscientização sobre o tema, o Veduca lançou o curso online Assédio Sexual: Prevenção e Combate, desenvolvido em conjunto com o Women Friendly, start-up pioneira na América Latina em certificação de estabelecimentos e empresas que atuam para eliminar o assédio de seus ambientes de trabalho e consumo. No espírito desse curso, o Blog do Veduca está levando ao ar uma série de posts a respeito dos abusos que muitas mulheres enfrentam, as consequências dessa violência e as possíveis soluções para o problema (veja mais abaixo o que já publicamos sobre o assunto).
Neste post, lembramos três casos recentes de acusações de assédio sexual que provocaram, além da punições ao acusado e de muita discussão, mudanças mais profundas em empresas, setores inteiros da economia ou mesmo em toda a sociedade. Incluímos links para algumas reportagens em inglês, porque trazem mais informações do que as páginas em português que encontramos. Leia a seguir.
Casos de assédio que trouxeram mudanças
1) Harvey Weinstein e as celebridades de Hollywood
O que aconteceu O caso tinha tudo para explodir: envolvia um produtor de filmes extremamente poderoso, que supostamente acossava atrizes famosas e propunha favores profissionais em troca de sexo – e de silêncio. Não deu outra. Quando as duas primeiras acusações contra Weinstein foram publicadas pelo New York Times, em 05 de outubro de 2017, a repercussão foi imediata. Em menos de uma semana, pelo menos outras 15 mulheres contaram ter sido assediadas pelo executivo. Ele se afastou da direção de sua empresa, mas as denúncias continuaram. Gwyneth Paltrow, Angelina Jolie e Asia Argento engrossaram a lista de mulheres que acusaram Weinstein, que desde então ganhou dezenas de novos nomes. No mesmo mês das primeiras acusações, o slogan Me Too, que havia sido criado em 2006 por Tarana Burke, uma sobrevivente de abuso sexual e fundadora de uma ONG pela auto-estima de garotas negras, passou a ser usada nas redes sociais por atrizes que queriam mostrar solidariedade às colegas que acusavam Weinstein e estimular mulheres comuns a compartilhar seus casos de abuso. O movimento ganhou força, pautou uma avalanche de reportagens e conversas públicas sobre o tema e se desdobrou em vários outros movimentos, como o Time’s Up, que propõe mudanças concretas para prevenir e combater o assédio sexual, e diversas versões locais da campanha.
Mudanças concretas que esses casos de assédio provocaram: – Mulheres que nunca puderam contar seus casos de assédio sentiram-se suficientemente apoiadas para revelar sua história. – Poderosos da indústria do entretenimento acusados de assédio, como Harvey Weinstein, Bill Cosby e Kevin Spacey estão sendo julgados ou presos ou perderam seu poder na indústria cinematográfica. – Como consequência do Time’s Up, um fundo para vítimas de assédio que sofreram retaliações e precisam de auxílio financeira foi criado. O mecanismo já arrecadou 22 milhões de dólares, distribuiu 750 mil dólares para organizações que ajudam causas femininas, reuniu 800 advogados voluntários, que se dispuseram a apoiar legalmente mulheres vítimas de assédio, e está em contato com 3500 pessoas que buscaram ajuda, segundo a presidente e CEO do movimento Lisa Borders. – Estúdios, produtoras e empresas correram para rever suas políticas anti-assédio e se comprometer com o combate a esse tipo de crime. As campanhas Me Too e Time’s Up também ajudaram a levar o debate para empresas de países da África Central que não tinham nenhuma política contra os abusos, segundo a diretora da ONU Mulheres, Phumzile Mlambo-Ngcuka, e geraram uma versão local da campanha na Índia, que abriu um novo capítulo na discussão sobre a necessidade de mais proteção para as mulheres indianas contra as ameaças de ordem sexual.
2) O assediador do ônibus na Avenida Paulista
O que aconteceu O ajudante de serviços gerais Diego Ferreira de Novais, 27 anos, foi preso depois de ejacular no pescoço de uma passageira do ônibus onde ele estava, no Centro de São Paulo, no fim de agosto de 2017. Levado à delegacia, ele foi solto no dia seguinte, após uma audiência no Tribunal de Justiça de São Paulo, que classificou o ato de Diego como delito de importunação sexual, pelo qual ele não poderia permanecer detido. O próprio Ministério Público Estadual, autor da denúncia contra Novais, havia pedido o relaxamento do flagrante, mesmo diante do fato de ele já ter duas passagens pela Polícia por causa do mesmo delito. A decisão causou revolta na passageira assediada e provocou uma grande discussão na imprensa sobre a necessidade de uma lei mais rígida contra o assédio sexual em lugares públicos.
Quatro dias depois de ser preso, Novais voltou a praticar assédio dentro de um ônibus, dessa vez, na esquina da Avenida Brigadeiro Luís Antônio com a Avenida Paulista, região das mais movimentadas da capital paulista. Segundo testemunhas, ele pôs o pênis para fora da calça e se esfregou em uma passageira, além de segurar a passageira no local onde estava, para que ela não pudesse escapar. Dessa vez, ele foi preso por estupro, porque houve uso da força contra a vítima. Diego não negou ter praticado os abusos, mas afirmou que precisa de ajuda médica para conseguir mudar de comportamento.
A história de Novais deixou ainda mais evidente o problema do assédio sexual no transporte público brasileiro. Estatísticas coletadas por empresas de ônibus e Metrôs, além de pesquisas com as passageiras, mostram que os abusos são frequentes e ocorrem no país inteiro.
Mudanças concretas que esses casos de assédio provocaram: O caso na Avenida Paulista reforçou a discussão sobre o tema e deu impulso à reivindicação antiga de profissionais da Justiça e de grupos feministas por mudanças na legislação. Um projeto de lei para tipificar o assédio no transporte coletivo e outras formas de violência, como “crimes sexuais contra vulneráveis e crimes sexuais contra a liberdade sexual”, passou a tramitar rapidamente no Congresso, até ser aprovado e sancionado, em setembro de 2018. Casos anteriores ao de Novais, como o de estupros coletivos realizados no Piauí, em 2015, e no Rio de Janeiro, em 2016, também contribuíram para dar visibilidade à questão.
Graças à nova lei, casos de assédio semelhantes ao praticado por Novais agora são enquadrados como crime, passível de pena de um a cinco anos de prisão, e não mais como contravenção.
3) O Google e o assédio sexual na indústria de tecnologia

O que aconteceu Uma das empresas mais valiosas e admiradas do mundo, o Google se viu às voltas, em 2018, com acusações constrangedoras de que a companhia minimizou ou até protegeu alguns de seus líderes que foram acusados de praticar assédio sexual aproveitando-se de seus cargos. Segundo o New York Times (NYT), um dos casos de assédio envolveu o executivo-sênior Andy Rubin, que teria deixado a empresa por causa de denúncias de uma funcionária. Ela afirmou que foi coagida a ter relações sexuais com ele em um uma viagem de trabalho. Ao sair da gigante tecnológica, sem que o motivo da demissão fosse revelado, Rubin foi saudado publicamente pelo executivo-chefe da empresa e ainda recebeu um pacote de benefícios equivalente a 90 milhões de dólares, de acordo com o NYT. Segundo advogados ouvidos pelo jornal, o Google poderia ter despedido o funcionário sem pagar praticamente nada, de acordo com a legislação americana.
Rubin afirma que nunca forçou a funcionária a se relacionar com ele e que o valor do seu pacote de benefícios foi “enormemente exagerado” pela imprensa. Ainda assim, a “bolada de despedida” e o silêncio da empresa sobre o caso, até que alguns empregados revelassem extra-oficialmente o que aconteceu, foram vistos por parte do corpo de funcionários e pelos movimentos feministas como uma forma de a corporação abafar o caso e compensar a demissão.
Em protesto contra a conduta de seu empregador, cerca de 20 mil funcionários do Google fizeram manifestações na porta e nos arredores dos escritórios da empresa em Londres, Dublin, Nova York, San Francisco, Cingapura e Tóquio, entre outros locais, em novembro de 2018. A movimentação gerou tamanho impacto na imprensa global que a companhia se viu obrigada a modificar suas políticas.
Mudanças concretas que esses casos de assédio provocaram: Uma semana depois das manifestações, o CEO do Google, Sundar Pichai, anunciou o reforço nos treinamentos do Google contra assédio sexual e a consolidação de canais mais efetivos para denúncias de conduta inapropriada, incluindo um site interno com apoio imediato e um aconselhamento de carreira a quem denunciar assédio. Além disso, a empresa se comprometeu a ser mais transparente quando casos de assédio vierem à tona, especialmente sobre a conduta da empresa frente às acusações. Procurado pela revista VEJA, em uma reportagem sobre a polêmica na companhia, o Google informou que demitiu 48 executivos nos últimos dois anos por assédio sexual. “Nenhum desses indivíduos recebeu um pacote de saída”, segundo a gigante do mundo digital.
Embora refiram-se a uma única empresa, as modificações que o Google precisou implantar foram vistas por representantes dos funcionários como um primeiro passo para mudar a cultura do setor de tecnologia. Mulheres que trabalham nessa área costumam definir o ambientes profissional como muito machista. Nos Estados Unidos, elas dizem, outros casos de assédio sexual já haviam sido abafados ou minimizados, o que cria um ambiente de insegurança e dificulta a ascensão das funcionárias a cargos mais elevados. Considerando-se o tamanho e a influência do Google, a esperança das profissionais do setor tecnológico é de que mudanças mais profundas aconteçam nos próximos anos.
Quer saber mais sobre casos de assédio que provocaram mudanças?
– O Veduca lançou o curso online Assédio Sexual: Prevenção e Combate. Acreditamos que mais do que discutir casos de assédio específicos, é importante debater os fatores que tornam esse tipo de violência tão frequente, assim como as soluções para esse problema. – A edição portuguesa da revista Vogue publicou uma reportagem bem abrangente, traduzida do inglês, sobre os impactos que os casos de assédio envolvendo celebridades e os movimentos Me Too e Time’s Up tiveram sobre o setor cinematográfico e a sociedade como um todo. – Em julho de 2018, a DW Brasil publicou uma entrevista com a fundadora da campanha Me Too, Tarana Burke, sobre as conquistas e dificuldades da mobilização contra o assédio. Vale a pena assistir.
– O movimento Me Too gerou muito apoio, mas também recebeu críticas. Cem atrizes, escritoras e celebridades francesas, entre elas a estrela Catherine Deneuve, assinaram uma carta em que afirmam que os casos de assédio precisam ser investigados, mas que o clima de caça às bruxas é nocivo e que o direito dos homens à importunação das mulheres faz parte da liberdade sexual. Veja mais neste vídeo, do site português Blitz. – Esta ótima reportagem do site Nexo analisa o impacto que a Lei da Importunação Sexual pode ter no combate ao assédio sexual no Brasil. Especialistas citados nessa matéria dizem que casos de assédio que ganharam espaço na imprensa ajudaram a impulsionar a aprovação da lei.
Que tal ler os posts anteriores do Blog do Veduca sobre assédio sexual?
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