- Peri Dias
Caso João de Deus: por que é tão comum acusações de assédio virem em grandes ondas?

Um dos temas mais presentes no noticiário brasileiro atual, o Caso João de Deus tem chamado atenção, entre outros motivos, pelo número de mulheres que acusam o médium de abuso sexual. A força-tarefa montada pelo Ministério Público de Goiás para investigar o caso recebeu 506 relatos, até esta quinta-feira (20/12), sobre supostos abusos cometidos pelo líder espiritual.
João de Deus recebia milhares de visitantes por ano em um centro de atendimento espiritual em Abadiânia (GO), onde ele conversava com essas pessoas e, muitas vezes, realizava rituais que supostamente ajudavam a curar doenças. Boa parte do público que comparecia ao local sofria de problemas graves de saúde, como câncer, e buscava no contato com o líder uma solução ou, pelo menos, um apoio espiritual. Porém, essas centenas de mulheres que acusaram João de Deus de assédio dizem que encontraram, em vez do acolhimento esperado, um homem que se aproveitou da vulnerabilidade delas para satisfazer seus desejos sexuais. O líder espiritual nega as acusações.
Os depoimentos que deram início à onda de denúncias foram veiculados pelo programa Conversa com Bial, da TV Globo, e pelo jornal O Globo. De início, 13 pessoas fizeram acusações contra o médium, mas em menos de duas semanas, o número de supostas vítimas já era quase 40 vezes maior. A progressão impressionante de relatos de abusos, no Caso João de Deus, reforça um padrão frequente em situações de assédio sexual que envolvem pessoas conhecidas. Há vários exemplos de homens muito poderosos em suas áreas de atuação que, em poucas semanas, viram alvo de dezenas ou centenas de denúncias de assédio sexual, depois que um ou alguns poucos depoimentos vêm à tona.
Entre os casos mais discutidos em 2018, um ano rico em denúncias de abuso, estão o do produtor de cinema Harvey Weinstein, que teria assediado mais de 80 mulheres, incluindo diversas estrelas de Hollywood, e o do médico Larry Nassar, acusado de molestar mais de 100 mulheres nos Estados Unidos, entre elas atletas da seleção de ginástica olímpica daquele país. No caso de Nassar, as denúncias foram tão numerosas e graves que a Federação de Ginástica dos Estados Unidos teve que entrar com um pedido de falência para conseguir pagar as indenizações às vítimas, depois que o médico foi condenado pela Justiça.
Nesses três exemplos, ainda que os abusos fossem muito frequentes, a maioria das vítimas guardou segredo durante anos e só revelou publicamente sua história quando outras denúncias surgiram. Para entender por que esse padrão se repete, o Blog do Veduca conversou com Nayara Teixeira Magalhães, analista de apoio jurídico do Ministério Público Federal, mestre em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília e pesquisadora de questões de gênero e justiça. Com base em anos de experiência no acolhimento legal e psicológico a mulheres vítimas de violência e assédio, Nayara afirma que o sentimento de culpa e o medo de ter seu relato desacreditado são, provavelmente, os principais fatores que motivam as pessoas que sofreram assédio a guardar segredo.
A conversa com Nayara faz parte de uma série especial sobre assédio sexual do Blog do Veduca (veja no fim deste post as outras entrevistas). Essa cobertura faz parte do lançamento do curso online grátis Assédio Sexual: Prevenção e Combate, que entrará no ar em breve, no Veduca, e que foi produzido em conjunto com a startup Women Friendly, a primeira da América Latina a certificar empresas e estabelecimentos que atuam para eliminar o assédio de seus ambientes de trabalho e consumo.
Leia abaixo a entrevista com Nayara Teixeira Magalhães.

Caso João de Deus revela padrão de medo e vergonha por parte das vítimas, diz pesquisadora
Blog do Veduca – Pela sua experiência no trabalho com vítimas de violência e assédio, que sentimentos surgem nas vítimas, quando a agressão acontece?
Nayara Teixeira Magalhães - Depende muito de cada caso, é claro, mas um ponto comum é o sentimento de culpa por parte das vítimas, assim como o medo de as pessoas desconfiarem do relato de assédio e a vítima se ver desacreditada. Isso parece ser comum a praticamente todos os casos.
Blog do Veduca – É isso que explica que muitas pessoas só denunciem o assédio muito tempo depois, como estamos vendo no Caso João de Deus?
Nayara Teixeira Magalhães - Esse caso tem particularidades, mas sim, esses elementos estão presentes e até agravados. No Caso João de Deus, as mulheres assediadas foram em busca dele. Elas procuraram uma pessoa em quem confiavam, então, há uma entrega pela fé e pela vontade de resolver a questão de saúde. Essas mulheres foram a Abadiânia dispostas a muita coisa para obter a cura. Isso gera um sentimento de culpa ainda maior. Para piorar, elas se depararam com uma situação em que não há elementos de prova, além da palavra delas. Seria muito fácil questioná-las, se elas denunciassem o abuso sozinhas.
Blog do Veduca – Existe também uma relação de poder, no Caso João de Deus?
Nayara Teixeira Magalhães - O João de Deus é um homem poderoso na região onde ele atendia os visitantes. Ele tinha influência política e na própria Polícia local, enquanto essas mulheres eram pessoas comuns, desconhecidas. Entre a mulher desconhecida e que ainda por cima está em um quadro de vulnerabilidade, por causa da sua situação de saúde, e um líder espiritual famoso, a quem as pessoas vão dar crédito? A tudo isso se soma também o estereótipo de gênero, de que as mulheres são mentirosas, de que elas se aproveitam das situações mais variadas para obter vantagem. Então, isso também pesa.
Blog do Veduca – E o que muda na forma de pensar das vítimas, quando outra pessoa vem a público denunciar o assediador responsável pelo abuso que elas sofreram?
Nayara Teixeira Magalhães - Quando uma pessoas toma essa coragem, as outras se identificam, é como se elas se tornassem várias. Esse é um gatilho importante. Claro que cada pessoa tem sua própria forma de pensar, mas no geral elas tendem a ficar encorajadas, por ver que a situação de assédio não aconteceu só com elas. No Caso João de Deus, os relatos são de que o abuso acontecia em situações íntimas, por isso, era fácil elas pensarem que aquela experiência tinha sido só delas. É possível que muitas das mulheres só tenham confirmado que aquela experiência foi problemática, aliás, quando souberam dos outros casos.
Blog do Veduca – Como assim?
Nayara Teixeira Magalhães - Eu suponho que algumas pessoas que estão passando por uma situação de doença talvez até aceitem, em nome da cura, essa dúvida sobre se houve algo errado naquele atendimento, mas quando outros depoimentos repetem aquela percepção que elas tiveram, elas veem que o abuso ocorreu. Além disso, elas deixam de ser a única voz dizendo aquilo. Quando só uma mulher denuncia, a tendência é que o questionamento venha sobre ela, mas quando 400 mulheres dizem a mesma coisa, as pessoas costumam pensar que é bem mais difícil desacreditar esse relato.
Blog do Veduca – Por que algumas vítimas conseguem romper esse ciclo de silêncio, em que ninguém denuncia porque acha que sua experiência foi a única?
Nayara Teixeira Magalhães – O que explica isso são fatores íntimos e pessoais. Em todos os casos de violência ou assédio sexual, há sofrimento da vítima. São comuns os relatos de choro, depressão, em alguns casos até de tentativas de suicídio. Então, a pessoa que quebra esse silêncio não é necessariamente a que está sofrendo mais. Na verdade, para que a denúncia seja feita, existe algum fortalecimento daquela vítima. Pode ser pela rede de apoio que ela tem, com uma família ou com amigas que a escutam e a acolhem. Também pode ser resultado da própria elaboração que a vítima vai construindo, quando conta sua história para alguém e se dá conta da gravidade do que aconteceu. Também tem muito a ver com a experiência anterior de vida dessa pessoa, com os reforços positivos ou negativos que ela recebeu quando se expôs.
Blog do Veduca – Então, essa rede de apoio é importante para ajudar a vítima de assédio a se recompor ou a denunciar a agressão?
Nayara Teixeira Magalhães – A gente diz que a rede é um dos elementos principais de ajuda das mulheres que sofrem abuso. Ela ter com quem contar, seja no sentido de compartilhar o que aconteceu, seja no sentido prático, de agir em conjunto e ir à delegacia, por exemplo, é muito importante. Mulheres desprovidas de uma rede de apoio são mais vulneráveis ao abuso e têm um espaço menor para se recuperarem. O conhecimento dos seus direitos é outro fator que conta. As mulheres que conhecem seus direitos, tendem a agir com mais segurança. O contrário também acontece. Muitas vezes, a rede de contatos da vítima desestimula a denúncia, com medo das consequências, e isso tem um impacto na decisão da pessoa assediada de denunciar ou não. De toda forma, é um fator fundamental em relação a como a vítima vai agir, depois que o assédio aconteceu.
Blog do Veduca – Há muitas denúncias falsas de assédio sexual? Esse não é um problema, também?
Nayara Teixeira Magalhães – Não existem muitas pesquisas sobre esse tema, então, não sabemos dizer a proporção de relatos que se mostram falsos. O que se pode dizer, pela experiência no atendimento às vítimas de assédio, é que é muito mais provável que tenhamos silêncio do que mentiras, ou seja, tem mais gente que sofreu assédio e nunca contou do que gente que nunca sofreu assédio e contou uma mentira. O silêncio, nesse sentido, é um problema que também deveria ser discutido pela sociedade, mas muitas vezes vemos que a preocupação se concentra totalmente na possibilidade de denúncias mentirosas aparecerem. Por que não discutimos com tanta frequência o fato de que muitos casos de assédio nunca vêm a público?
Blog do Veduca – O que salta aos olhos, no Caso João de Deus, com relação à forma como a sociedade brasileira lida com acusações de assédio?
Nayara Teixeira Magalhães – Esses relatos de abuso por parte de líderes religiosos acontecem há muitos anos. Há um ponto comum, que é o fato de os acusados terem uma credibilidade espiritual, o que os coloca, inicialmente, acima de qualquer suspeita. Isso também os protege, até um certo ponto. Temos, nesse contexto, os exemplos de alguns padres da Igreja Católica acusados de abuso sexual por crianças e adolescentes, temos as denúncias recentes ligadas ao Prem Baba, agora o João de Deus. Outra questão é que as pessoas que denunciaram os abusos são historicamente vulneráveis. A objetificação do corpo da mulher legitima esse tipo de comportamento por parte de líderes espirituais. Eles fazem o bem a tantas pessoas, ficam praticamente enclausurados durante anos, por que não podem se satisfazer com essas mulheres? Para muita gente, essa forma de pensar é válida. Um comportamento de abuso, às vezes sutil, não parece tão grave em relação ao bem que eles fazem. Quando a gente vê o João de Deus sendo aplaudido e aclamado, no dia em que ele voltou ao seu centro de atendimento em Abadiânia, depois que as primeira denúncias foram feitas, a gente entende o poder que ele tinha. A cidade cresceu em torno dele. Esse poder é um fator de proteção.
Blog do Veduca – O fato de o Ministério Público e a Justiça estarem respondendo rapidamente às denúncias de assédio, no Caso João de Deus, é um sinal de que o Brasil está avançando na sua capacidade de resposta às acusações de abuso?
Nayara Teixeira Magalhães – Como há muitas situações de assédio que nunca se tornam públicas, não sabemos exatamente se estamos avançando na prevenção e no combate a essa violência. Eu até poderia apostar que existe um fator pedagógico, quando o Estado toma atitudes para investigar um homem poderoso, mas estamos falamos de uma hierarquia de poder entre homens e mulheres que existe há milhares de anos, então, essa mudança leva tempo para se consolidar. É possível, inclusive, que as violações de direitos estejam até mais sofisticadas, em resposta ao fato de a sociedade não tolerar tão abertamente o assédio. Hoje é preciso dar uma cara de legalidade ao assédio, não pode ser tão escancarado quanto era antes, por isso, o abusador tem que dar uma conotação de dúvida. No Caso João de Deus, esse elemento de dúvida está bem presente em alguns relatos. Se as mulheres contassem que sofreram uma penetração durante o atendimento espiritual, seria evidente o abuso, mas muitas situações são mais sutis. Passar a mão para curar uma vítima é assédio? Em vários casos, a situação fica nesse limite, em que o assédio é menos óbvio. Então, a gente vê mudanças na sociedade em relação ao assédio, quanto a isso não há dúvidas. As informações circulam com mais facilidade, e campanhas como a Me Too, por exemplo, têm um impacto global, mas é difícil mensurar os avanços. Mesmo no caso da legislação, tivemos um marco importante, com a aprovação da Lei de Importunação Sexual, em 2018, mas a lei veio por pressão da sociedade. A lei não contempla todos os fatos da vida, ela tem que acompanhar a evolução das coisas. Então, o mais importante é que a sociedade aproveite as denúncias que geram repercussão para debater sobre o contexto como um todo e pensar em novas formas de atuação contra a violência. Esse é o nosso desafio a partir de situações como o Caso João de Deus.
Saiba mais sobre o que o Caso João de Deus revela como padrão em denúncias de assédio
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- Esta reportagem da BBC Brasil explica como trabalha a força-tarefa que investiga denúncias de assédio sexual contra João de Deus.
- No vídeo abaixo, da plataforma TED, uma das primeiras pesquisadoras do tema da violência contra a mulher na Argentina, Inés Hercovich, explica por que muitas vítimas de abusos deixam de denunciar as agressões.
https://www.ted.com/talks/ines_hercovich_why_women_stay_silent_after_sexual_assault?language=pt-br
– Que tal ler os posts anteriores do Blog do Veduca sobre assédio sexual?
*Primeiro Assédio: campanha mostrou que abusos começam cedo
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