- Peri Dias
Canal de denúncias contra o assédio precisa ser para valer
A mulher que foi sexualmente assediada na empresa finalmente recorre ao canal de denúncias que a companhia estabeleceu, relata o problema, depois de superar o medo de perder o emprego, a vergonha de se expor e a culpa por achar que “deu espaço” ao abusador, mas nada acontece. Essa situação, que segundo quem trabalha no combate ao assédio ocorre em várias corporações, é uma das piores armadilhas no caminho das organizações interessadas em criar uma cultura de segurança para suas funcionárias.
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“Nas empresas em que há ouvidoria, às vezes é só para inglês ver. Ser ineficaz ou proteger só a empresa não adianta nada”, diz Ana Addobbati, fundadora do Women Friendly, primeira start-up da América Latina especializada em certificar e orientar companhias que buscam construir ambientes livres de assédio para as mulheres.
Ela diz que, para de fato contribuir com o bem-estar das funcionárias, o canal de denúncias da empresa precisa ser acolhedor, confiável e oferecer respostas concretas depois de a vítima contatá-lo.
Em entrevistas ao Blog do Veduca, Addobbati e outras profissionais que atuam na construção de uma cultura anti-assédio explicaram caminhos de ação para as companhias comprometidas em combater esse tipo de violência. Nos posts anteriores, elas contaram por que o assunto tornou-se estratégico para as organizações mais atualizadas e ofereceram sugestões de como os líderes corporativos podem começar a trabalhar esse tema com suas equipes (itens 1 e 2).
Neste post, compartilharemos outras três recomendações (do 3 ao 5). Leia a seguir.
Canal de denúncias efetivo e treinamento são medidas fundamentais
3) Criar um processo efetivo de denúncias
Muitas empresas já contam com e-mail ou telefone para relatos de assédio moral e sexual ou com canais que funcionam como uma ouvidoria interna. Criar esses mecanismos é uma ótima medida, mas eles precisam funcionar de verdade, para fazer a diferença.
Segundo Ana Addobbati, a vítima que reporta um abuso precisa, antes de mais nada, sentir-se acolhida. Ela tem que ser ouvida com respeito e sem julgamentos. Evidentemente, é possível e, às vezes necessário, pedir mais informações sobre as histórias que são reportadas, mas isso deve ser feito sem juízos de valor, que às vezes transparecem no tom da pessoa que dá a primeira resposta ou no conteúdo das perguntas – questões como que tipo de roupa a denunciante usa no trabalho são irrelevantes e geram desconfiança quanto à seriedade com que o relato será levado à frente.
Outro ponto importante é que a denúncia seja tratada com discrição e que a vítima tenha a segurança de que não sofrerá retaliação por ter procurado o canal de denúncias. Nas empresas pequenas e médias, esse ponto pode ser difícil de cumprir, por isso, as pessoas responsáveis por implantar medidas de combate ao assédio precisam ser muito cuidadosas na escolha de quem terá acesso aos relatos e ao encaminhamento das questões que surgirem.
Além disso, uma vez feita a denúncia, é fundamental que ela gere uma investigação concreta e ágil. Segundo Ana Addobbati, algumas ouvidorias perdem efetividade por causa das ligações entre os funcionários que trabalham no recebimento e investigação dos relatos e aqueles que estão envolvidos na denúncia. É comum que o responsável pelo andamento do processo tente de alguma forma abafar o caso ou adiar a tomada das medidas cabíveis para não prejudicar os colegas. Por isso, muitas vezes a solução para um canal de denúncias mais efetivo passa pela contratação de uma ouvidoria externa.O fato de os funcionários dessa empresa não conhecerem as pessoas envolvidas nas denúncias tende a tornar o processo de investigação mais impessoal e aumenta a confiança das funcionárias no processo.
4) Preparar o RH para agir corretamente
Além de estabelecer um canal de denúncias apropriado e efetivo, as empresas também precisam preparar a área de Recursos Humanos para atuar de forma adequada frente a relatos de violência.
A Procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT) Sofia Vilela, uma das responsáveis pela elaboração de uma cartilha da organização a respeito de assédio sexual nas empresas, explica que o RH é, muito frequentemente, a área que recebe as denúncias, mesmo em empresas nas quais há um canal específico com esse fim. Logo, seus funcionários e líderes precisam estar atualizados sobre a legislação a respeito de assédio e sensibilizados para a importância de garantir um ambiente seguro às empregadas e empregados da corporação.
Ela afirma que os profissionais de Recursos Humanos podem buscar, inclusive, uma postura de proatividade em relação ao assédio sexual.
“Às vezes, as fofocas chegam ao RH antes das denúncias, e o departamento pode agir preventivamente e perguntar às pessoas envolvidas na fofoca sobre o que está acontecendo, com todo o tato”, ela afirma. “O agressor pode estar agindo até mesmo sem perceber que está praticando assédio. Há casos em que o profissional está interessado na colega, manda flores e chama para sair, por exemplo, mas não percebe que a insistência está causando medo ou constrangimento. Nessas situações, o RH tem também um papel de alerta a esse funcionário”, complementa Vilela.
A procuradora defende, ainda, que o departamento de Recursos Humanos contribua com treinamentos e conversas com as equipes da companhia, para construir um diálogo que leve a uma cultura de respeito interno. Palestras e eventos sobre diversidade, inclusão e segurança no trabalho podem ser uma bom espaço para dar o pontapé nessa discussão.
5) Treinar consistentemente funcionários de todos os níveis
Cada empresa tem um desafio diferente, quando se trata de construir uma cultura de segurança, mas um ponto comum a todas elas é a necessidade de contar com respaldo das lideranças a essa questão. Quanto mais os chefes demonstrarem compromisso com a prevenção e o combate ao assédio, mais rapidamente a atitude de todos os funcionários tende a seguir nesse sentido.
“Muitas vezes, a liderança demonstra dúvidas sobre o processo. Alguns executivos acham que falar sobre o assédio pode tornar a empresa vulnerável, mas o que vemos é o contrário. Quando a conversa começa a acontecer, a companhia fica mais forte e preparada”, diz Ana Addobbati, do Women Friendly.
A criação de espaços de diálogo sobre o que é assédio, como esse tipo de abuso se manifesta e que efeitos traz para as assediadas costuma ser o primeiro passo para que a lideranças engajem-se no processo de transformação da cultura interna. Essa conversa pode, então, evoluir para a consolidação de programas ou políticas de prevenção aos abusos.
Com os chefes envolvidos, é importante estabelecer o diálogo também com as equipes como um todo, principalmente com as mulheres em posições hierárquicas mais baixas, que costumam ser as pessoas mais vulneráveis ao assédio. Segundo Ana, nessa etapa o desafio mais complexo é construir a confiança de que as vítimas de assédio podem, sim, denunciar o problema.
“As próprias mulheres frequentemente normalizam o assédio, acham que faz parte do ambiente de trabalho. Elas têm que saber que não deveria fazer”, diz a especialista.
Incluir o tema do assédio em treinamentos, palestras e cursos internos é um caminho para que o tema seja abordado mais de uma vez e, assim, se consolide na companhia.
“Quando fazemos uma palestra sobre assédio em uma empresa, percebemos que, do ponto de vista individual, há um impacto imediato. Agora, a cultura não se muda de um dia para outro, é um processo, por isso, é preciso voltar a esse tema outras vezes”, afirma Ana.
Saiba mais sobre canal de denúncias e outras ações de combate ao assédio
Em 2018, o Governo do Estado de São Paulo lançou uma página para receber denúncias de funcionárias públicas sobre assédio sexual em órgãos e empresas pertencentes ao poder público estadual, como a Sabesp e o Metrô. O canal faz parte de um conjunto de ações para conscientizar servidores públicos paulistas sobre a importância da prevenção aos abusos no ambiente de trabalho. Veja abaixo um vídeo da campanha.
Esta reportagem da jornalista Vivian Soares, no Valor Econômico, conta como empresas de grande porte estão estabelecendo canais de denúncia do assédio sexual e treinamentos sobre o tema.
Como resposta às denúncias de assédio sexual em série na seleção brasileira masculina de ginástica artística, o Comitê Olímpico Brasileiro lançou um Código de Conduta Ética e um canal de denúncias de assédio, que pode ser usado por funcionários, atletas, integrantes das delegações esportivas e voluntários.